Adeus

Hoje seu corpo repousou, como tua alma talvez já estivesse a repousar. Não sabemos de quanto tempo de angustia ela precisou para encontrar a paz, depois de um ato cruel. Quantos foram os dias de vida a calar sobre olhares e conversas invasivas, não permitidas, ignorada sua dor, sua vontade. Por quanto tempo será que calou, fingindo não ser consigo, não ver o que viu. Sentindo-se culpada, medo de ser apontada como provocadora de um "amor", doentio, propriedade de um macho que só essa sociedade hipócrita autoriza a ser. Hipócrita sim, pois não fosse seu fim trágico, disso ela sabia, seria apontada na rua como provocadora, sentenciada não como vítima. Ainda diante do trágico fim tem quem se pergunte porque ela foi até ali... Sim, eu meu pergunto porque não damos ouvidos a nosso sexto sentido, mas não é isso que querem dizem, querem, como sempre, lhe atribuir algum tipo de culpa que só a mulher sempre tem. Qualquer passo é auto, passível de prova contra a ré, que só é vítima mesmo quando diante de fim tão trágico... Quantas de nós não sabemos se o sentido é sexto ou se é o medo que sempre nos acompanha e que faz em dias assim nos dirigir a si mesmas, num pensamento calado pensando, podia ter sido comigo... Quantas vezes não podia ter sido com a gente, estamos em perigo constante, em qualquer passo dado e não dado, dentro e fora de nossas casas... Eu sei que você sufocou, se angustiou, se perguntando se deveria ou não falar... Seu silêncio de final triste te levou daqui para um lugar de paz, a dor é de quem fica aqui. Sua voz, sua denuncia teria te levado a um caminho difícil, para o qual é preciso muita força pra trilhar, diante dos dedos que se apontam, das explicações e provas que se tem que dar, das injurias e calunias, da descrença... Hoje você só é vítima porque partiu. Seria ódio até de outras mulheres que criadas nessa cultura misógina acusam-se umas às outras, defendendo machos que não lhes respeitam, assim desrespeitam até uma mana em prol de um homem em vão. O corpo é corpo, pedaço de carne sem vida. Mas de alma encarnada difícil pensar nesse aflito final, descrença possível que um ato horrível por qualquer pessoa possa passar. Sua alma singela, o olhar meigo e doce, os amigos que sempre te consideraram demais, eu lembro disso tudo e de suas poucas palavras. Essas poucas palavras que fizeram com que você não falasse sobre essa situação que era demais. O que teria mudado Isa, se houvesse denuncia?... Difícil saber. O que me dói é a dor perto do fim, a violência sem fim que nós, por sermos mulheres, vira e mexe viemos a passar... No mesmo dia que você, possivelmente mais doze mulheres tiveram seu fim...Mas você não é uma estatística, porque hoje a dor dói na gente, a gente que em geral não vê esses números como gente, mas são sim! São treze famílias por dia que choram esse fim. Até quando?... Espero que esteja em paz, que haja essa paz depois do fim. Depois do corpo que descansa, sua alma também enfim. Que haja paz para nós, que precisaremos achar forças para encarar essa realidade de que a brutalidade possa estar bem ali. Que sua família encontre cicatriz possível para o fim deste martírio, que haja luz em saber de ti, ainda que haja dor, não é a dor do desconhecido. Que sua aura de paz te acompanhe na eternidade, enquanto nós seguimos até o nosso fim por aqui. Que não haja mais fins assim, minha linda. Que possamos quebrar com esse tipo de fim. Que aja aprendizado em meio a dor. Que sua alma retorne tendo superado a tragédia em si. Que onde houver ódio possa haver amor. Como diz a música da Legião Urbana: "É tão estranho, os bons morrem jovens (...) os bons morrem antes (...)  vai com os anjos, vai em paz (...) e o que sinto, não sei dizer."

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