Reflexões burguesas

Fazia um esforço, um exercício de autoboicote, uma espécie de choque mental behaviorista toda vez que pensava nele, era pra ver se esquecia por um lapso de tempo... Era um exercício de autocensura. De repente se deu conta da palavra: censura. Apenas a palavra tortura lhe dava mais calafrios que a palavra censura... Entendeu que não gostava disso. Era capricho. Lembrou-se de um amor antigo, um dialogo desses de namorados juvenis apaixonados, algo como "vai lembrar de mim?" e a resposta, o trunfo cênico do poeta apaixonado, "não dá pra lembrar de quem nunca se esquece"... Apesar do efeito plástico da frase, por vezes, como há tempos (e deus, quanto tempo!), a frase cênica ultrapassava seu sentido plástico e se fazia realidade... Por isso a ideia inicial do exercício de autocensura (ui, que pavor que ela sentia sempre que repetia em pensamento esse querer se censurar...), idealizava não se deixar roubar por sentimentos romantizados. Num caos cênico desses que a vida às vezes nos dá, tudo tinha parecido pique novela... Com direito à plateia e espetáculo. Como ela odiava isso! Gostava de ser invisível, sua arte, de todas que tentara, não passara do papel que sussurra baixinho ao seu leitor as ideias dadas, que ficam por acontecer no silêncio da imaginação daquele... Nada mais solitário e particular que a literatura, e era isso que ela amava. Em meio a esse espetáculo com direito a plateia e toda realidade do antiherói que lhe viera, por outras vozes, aquela ideia de que ele não a mereceria. Agora pensando, coisa mais burguesa, e por isso com traços de novela, essa história de meritocracia no sentir... Incomodava-a ainda, mais que isso de mérito, sua própria atitude mental de não esquecimento... Em cada momento, e por isso se autocensurar... De repente novamente um estalo. Viviam tempos mesquinhos, que só a lógica burguesa possibilita, pensar na vida, ter tempo pra pensar. Em outra realidade ou outros tempos não se disporia de tamanho luxo, a vida exige pressa quando não se tem conforto. Nada de romanciar. Viu que era inútil tudo. O pensar e o não pensar. O se autocensurar (que horror! que horror! censura é pavoroso!...). Era uma inutilidade prosaica se ater a isso, se autoboicotar. Importa é viver. Pois que tempos difíceis se instauram e a mente não terá tempo pra cozer ideias de amor.

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